Radio A Toa

sábado, outubro 15, 2011

As gavetas de Dalí



“O corpo humano neo-platônico, puro na época dos gregos, está hoje repleto de gavetas secretas que somente a psicanálise pode abrir”. Deparei-me com esses dizeres há algum tempo, registrados em um folheto que convidava profissionais e estudantes a participarem da XVII Jornada de Estudos Psicanalíticos. Contudo, a ilustração do folder, uma obra do pintor surrealista Salvador Dalí, puxou meus olhos empacados de suas órbitas.

A pintura de Dalí centrava-se na figura de uma mulher longilínea e oscilante. Apesar de disforme, seu corpo era incrivelmente sensual e sua cabeça quase alcançava o céu. Sua face parecia um esboço de argila, cor de terra, e os traços somente se insinuavam. O equilíbrio frágil só se dava graças a aparatos de sustentação ligados por espécies de forquilhas que a mantinham de pé. A tal “Dalila”, com licença do Dalí, estava coberta por um vestido azul transparente que deixava ver nuances do corpo. Os seios apontavam para o céu e a cintura quase se rompia de tão fina. Seus longos braços pareciam buscar um abraço e a ponta do queixo voltava-se para cima como se procurasse um pedaço de azul, ou quem sabe um objeto perdido. Ao longo de sua coxa carnuda abriam-se várias gavetas e logo abaixo de suas altivas glândulas mamárias, na altura do diafragma, saía uma gaveta maior. O curioso é que esses compartimentos não continham nada visível.

Certa vez escrevi sobre gavetas. Talvez por isso a figura tenha me impressionado tanto. Na ocasião, eu falava sobre datas, lembranças e gavetas na mente. Então, ao ver a intrigante mulher, percebi que cometia simplificações. Meus incipientes escritos não tinham nada de original. A Dalila que pensei era a de Sansão. Tinha caprichos demais; fazia suposições e ousava delimitar os sentimentos. Era reta, avessa às contradições. A “Dalila” de Dalí me mostrou que gavetas estão por toda parte, dilacerando epiderme, músculos e coração.

(As gavetas de Nina fizeram-me relembrar esse textinho aí, já escrito por 'mins' há algum tempo...)

Um comentário:

Nina Blue disse...

Excelente, cara Keila!!!!
Deliciosamente bom, ainda mais que fala sobre Dalí, ele que possuia estrutura psicótica muito comentada nos meios acadêmicos e psicanálíticos. Eu penso que Dalí além do grande talento, possuia uma realidade interna sem limites (a céu aberto), muito além de nós, que vivemos sempre delimitados em fronteiras e obstáculos imaginários. Muito bom!